02/12/2007

Vai passar


"Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está ai, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como "estou contente outra vez". Ou simplesmente "continuo", porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como "sempre" ou "nunca". Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência. Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de "uma ausência". E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços. Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na largatixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça. Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa. Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim: - ... mastiga a ameixa frouxa. Mastiga , mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca ..."



Caio Fernando Abreu (Caio, tou te amando muito, me liga hein)

23/11/2007

Como já dizia Vinícius

É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas para fazer um samba com beleza
É perciso um bocado de tristeza
É perciso um bocado de tristeza
Se não, não se faz um samba não

Se não, é como amar uma mulher só linda, e daí?
Uma mulher tem de ter qualquer coisa além da beleza
Qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De saber mulher feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor e para ser só perdão

Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não

Feito essa gente que anda por aí brincando com a vida
Cuidado companheiro, a vida é para valer
E não se engane não, tem uma só
Tu é mesmo o que é bom
E ninguém me vai dizer que tem de ser provado
Muito bem provado com certidão passada em cartório do céu
E assinado em baixo Deus, e com firma reconhecida
A vida não é de brincadeira amigo
A vida é a arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher a sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Põe um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba

Põe um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
E se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
. . .


Música que tocou ontem no lugar que eu adoro,
na companhia de uma pessoa que eu amo,
sentada na calçada e olhando a lua.

08/11/2007

Carta para alguém bem perto


"Não pode ser. Não posso ser assim. Estar desta forma, existir. Por quê? Será que todo mundo sente isso? Essa esquisitice enquanto respira? Todo mundo pensa enquanto respira? Pensa em cada bocado de oxigênio que entra e que sai, depois, já estragado, já gás carbônico? Eles sentem assim, da maneira que eu sinto? Gostaria de saber se as pessoas ficam pensando sobre o ar ou se apenas o respiram, de forma simples e vital. Queria saber se é mais agradável ser outra pessoa. Se é bom sentir-se em outro. Num corpo mais gordo – será mais macio existir dentro de 90 quilos? O gosto da boca, a sensação de estar vivo, seria diferente? Porque há um sabor de vida dentro da cavidade bucal. Há microorganismos vivos por todos os cantos da gente. Alguém aí sente isso? Como eu sinto, desde menina, cócegas estranhas, que me inquietam e agoniam, por causa desses seres viventes, que têm funções biológicas que nunca entendi. Quantas bactérias carrego comigo? Por que, afinal, essa complexidade toda? Essa chatice indagativa existencial? Por que não sou uma burra? Por que eu não sou uma mesa? Simples como uma mesa. Óbvia como uma mesa. Prática. Aceitável. Necessária".

Fernanda Young.