02/06/2013

Desde muito cedo aprendi a amar e ser amada por seres humanos. Não lembro de alguém na minha família me dizer que fulano era gay. Fui aprender que as pessoas eram divididas entre heterossexuais e homossexuais fora de casa. O que me foi ensinado dentro de casa foi respeito e amor. Esses valores me são passados até hoje na minha família, e muitas vezes por pessoas gays, se isso interessa pra alguém que está lendo isso. Talvez esse seja o motivo da minha indignação perante tanta coisa que tenho visto no mundo, fora da minha casa. Taxar seres humanos pela orientação sexual, cor, religião, etc, não vejo em quê o caráter de uma pessoa pode ser menos importante do que outra coisa. Pessoas que usam o nome de Deus pra alegar ser contra o casamento gay. Me desculpem, mas pra mim Deus é só uma coisa: AMOR. Se você usa o nome de Deus pra dizer que é contra o amor, nosso Deus não é o mesmo, felizmente. Pra mim, a palavra "gay" sempre foi e sempre será "uma pessoa que ama outra pessoa". Me preocupa muito seres humanos não serem tratados como tal e o amor ser visto com um problema no mundo. Enquanto eu viver, vou me indignar.

08/10/2012

Sonho.

Alguns sonhos de um coração bobo em época de campanha política:

Sonho com uma política onde somente o que importa sejam as ideias e somente o que preocupa seja o bem do povo. Sonho com uma política onde os candidatos não sejam citados pelo tamanho do nariz ou da barriga, mas pelo tamanho do cérebro ou do coração. E que não os tratassem por apelidos ofensivos, e sim pelos seus nomes. Onde as pessoas lembrem que candidato é ser humano e ser humano tem família, que quando se ofende um está ofendendo também mais um monte que está em volta.

Sonho com uma política onde os amigos respeitem o voto dos outros amigos, que voto não seja motivo de julgamento da capacidade intelectual ou caráter, afinal motivo é uma coisa que cada um tem o seu. Sonho com uma política onde amizade não seja abalada. Onde as pessoas não achem que voto é sinônimo de amizade.

Sonho com uma política onde todos possam ser cordiais: candidatos e candidatos, candidatos e eleitores, eleitores e eleitores. Onde respeito não seja sinônimo de falsidade.

Sonho com uma política onde não haja poder, onde os candidatos queiram somente o bem do lugar em que vivem. Mas havendo poder, que esse não seja conquistado a qualquer custo, mas sim com capacidade.

Sonho com o impossível. Sonho com o amor.

13/02/2011

"Deixai que os fatos sejam fatos naturalmente sem que sejam forjados para acontecer. Deixai que os olhos vejam os pequenos detalhes lentamente. Deixai que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes como móveis inofensivos para lhe servir quando for preciso, e nunca lhe causar danos. Sejam eles morais, físicos ou psicológicos."

11/12/2010

Quase um ano depois sem postar, porque email de Afonso Celso é sempre bom receber:

(Fernando Pessoa)

"Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final. Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos da vida que já se acabaram.

Foi despedida do trabalho? Terminou uma relação? Deixou a casa dos pais? Partiu para viver em outro país? A amizade tão longamente cultivada desapareceu sem explicações? Você pode passar muito tempo se perguntando por que isso aconteceu…. Pode dizer para si mesmo que não dará mais um passo enquanto não entender as razões que levaram certas coisas, que eram tão importantes e sólidas em sua vida, serem subitamente transformadas em pó. Mas tal atitude será um desgaste imenso para todos: seus pais, seus amigos, seus filhos, seus irmãos, todos estarão encerrando capítulos, virando a folha, seguindo adiante, e todos sofrerão ao ver que você está parado.

Ninguém pode estar ao mesmo tempo no presente e no passado, nem mesmo quando tentamos entender as coisas que acontecem conosco. O que passou não voltará: não podemos ser eternamente meninos, adolescentes tardios, filhos que se sentem culpados ou rancorosos com os pais, amantes que revivem noite e dia uma ligação com quem já foi embora e não tem a menor intenção de voltar.

As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas realmente possam ir embora… Por isso é tão importante (por mais doloroso que seja!) destruir recordações, mudar de casa, dar muitas coisas para orfanatos, vender ou doar os livros que tem. Tudo neste mundo visível é uma manifestação do mundo invisível, do que está acontecendo em nosso coração… e o desfazer-se de certas lembranças significa também abrir espaço para que outras tomem o seu lugar.

Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se. Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos. Não espere que devolvam algo, não espere que reconheçam seu esforço, que descubram seu gênio, que entendam seu amor. Pare de ligar sua televisão emocional e assistir sempre ao mesmo programa, que mostra como você sofreu com determinada perda: isso o estará apenas envenenando, e nada mais.

Não há nada mais perigoso que rompimentos amorosos que não são aceitos, promessas de emprego que não têm data marcada para começar, decisões que sempre são adiadas em nome do “momento ideal”.  Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará!

Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo, sem aquela pessoa – nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade. Pode parecer óbvio, pode mesmo ser difícil, mas é muito importante. 

Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira. Deixe de ser quem era, e se transforme em quem é. Torna-te uma pessoa melhor e assegura-te de que sabes bem quem és tu próprio, antes de conheceres alguém e de esperares que ele veja quem tu és.

E lembra-te:
Tudo o que chega, chega sempre por alguma razão."


16/12/2009

Solidão é não conseguir amar o que se tem e fingir felicidade.

01/04/2008

Para uma menina com uma flor

. . .



Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre um nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, parecendo uma santa moderna, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der uma paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta e não concorda porque ele é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, Minha namorada, a fim de que, quando eu morrer, você, se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse cantando sem voz aquele pedaço que eu digo que você "tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois".

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nessas montanhas recortadas pela mão de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.


Vinícius de Moraes.

29/01/2008

Carta para alguém bem perto II

=)

"Porque tudo que tem feito em sua vida é assim, meia-boca, empurrado com a barriga. Outro dia, deu-se conta da gravidade de sua apatia, tomando um suco de laranja. Numa lanchonete de esquina. Nunca havia ido naquele lugar antes, mas quis tomar um suco. De repente. Ela desejou fortemente a juventude de tomar suco no canudinho. Parou em fila dupla, deixou o pisca-alerta ligado como explicação. Chegou no balcão, pediu seu suco, quase sorrindo. De laranja. Sem açúcar. Deu um primeiro gole e olhou ao redor. Viu outras pessoas bebendo sucos. Algumas tomando cafés; a maioria, coca-colas. Ariana ficou algum tempo desse jeito: observando os próximos, bastante impressionada, um tanto quanto chocada. Chocada por não ter com o que se chocar. Ninguém ali sequer atraía sua curiosidade. Ninguém tinha o cabelo cortado de forma estranha, ou um casaco no dia quente que fazia, ou um piercing no nariz. Não viu um casal se beijando, nem duas lésbicas disfarçando olhares escusos. Não achou nenhum menininho de sete anos com jeitinho de bicha. E este mundo apático era o mundo apático em que ela vivia. Ainda é, aliás. Só que, agora, ela sabe que não quer mais nada disso. Não quer entrar num lugar e encontrar só respeito. Somente respeito. Ela não agüenta mais ver a filha falando que cigarros fazem mal à saúde. Que não suporta maconheiros. Não pode escutar nenhum outro comentário a respeito da importância do autoconhecimento ou do amplo debate democrático. Ela quer um ruído. Um estrondo. Um!... Quer viver sua vida com trilha sonora de uma banda de metaleiros adolescentes. De um negão cantando rap. Sempre teve pavor da idéia de tornar-se uma dessas mulheres que morrem de medo dos avanços dos costumes. Que se dizem horrorizadas com a juventude de hoje em dia. Ariana não quer acabar como a mãe, que achava que mulher de tatuagem era vagabunda e homem de brinco era pederasta. E achava porque, na sua época – gente como a mãe de Ariana teve época e, ainda estando viva, deixou de ter -, isso não existia. Aí, quando a revolução sexual invadiu sua privacidade disfarçada de mídia, ela passou a dizer sandices do gênero: se a minha filha casar com homem de cabelo comprido, eu morro. Se a minha filha fizer um aborto, eu me mato, Se a minha filha for sapatão, ih, eu nem sei. Não teve uma alma caridosa para chegar perto e dizer: minha senhora, o mundo mudou; mudará sempre. Não existe certo, existem eras. O mundo já acreditou que ser gordo era ser saudável e abastado, e que ser magro era o contrário. Hoje, gordos são doentes relaxados e magros são chiques. Tomar banho já foi coisa de pobre. Banhar-se era pra doentes. O mundo, minha senhora, não é somente aquilo em que você acredita. Não é apenas o que a senhora vê. Nem é aquilo que disseram para a senhora que é. O mundo é bem maior que essa sua cabecinha. Guarde, portanto, suas tolices para a senhora mesmo, ou não vai ganhar sopa por uma semana. Mas ninguém falou essas coisas para a velha e ela morreu esclerosada. Na família de Ariana, todas as mulheres morrem esclerosadas. Porque ninguém avisa às coitadas que elas estão falando merda, pensando merda e fedendo a merda. Ariana devia ter chegado para a mãe e explicando que, número 1, a virgindade não passa de uma película problemática, número 2, aos 13 anos, temendo perder-se com um homem que não a amasse, temendo ser abandonada na noite de núpcias quando o futuro noivo descobrisse que era uma perdida, ela enficou o dedo na vagina para acabar com a questão, e número 3, fez isso por vários dias, até que tivesse a certeza de que nada mais a impediria de ser livre – na época, a liberdade estava dançando discoteque e uma calça de lamê prateada poderia realçar um cabaço. Só que a mãe dela não soube de nada disso. O erro de Ariana, que agora ela percebe e paga seu preço, foi ter sido uma libertária sem que ninguém soubesse. Os pais foram defuntos de consciência tranqüila, convictos de terem oferecido à filhinha uma criação exemplar, afinal haviam assistido à cerimônia do casamento da sua princesa virginal com um bom rapaz. Rapaz de posses. Sequer desconfiaram das intenções de Ariana e Rodolfo. Que se casaram sem pensar no que estavam fazendo. O plano era vender todos os presentes e ir para a Europa. Estavam apaixonados, fariam qualquer negócio para viver livremente; e o casamento veio a calhar. Não contavam que, de repente, encenações amanhecem como puras verdades. E um dia acordaram com o sacramento do matrimônio concretizado. Ariana tornava-se, enfim, uma verdadeira fecunda. Então ela fez o melhor que pôde; agarrou-se à gestação como se aquele feto, uma vez crescido, fosse a garantia de que nunca se tornaria uma velha esclerosada. Se algum dia Ariana se chocasse com alguma situação do mundo, o feto lhe diria: mamãe, os tempos mudaram. Hoje nós somos assim, e é perfeitamente normal ser desse jeito. Acontece que uma vingança já estava a caminho. Praga de mãe, mãe que nunca se conformou em ter uma filha que tatuou no corpo uma música dos Beatles. Pois Ariana tem escrito na barriga, logo acima do púbis: All you need is love. E a lei do retorno – mais um decreto tirano do destino – vingou essa maternidade ultrajada, fazendo de Daniela, o feto, uma mocinha preconceituosa e conservadora. Agora, Ariana está aí, chocada, e não tem ninguém que a ridicularize. Ela está chocada porque o mundo mudou. O mundo andou pra trás.

Chupando suco de laranja pelo canudinho, no balcão de uma lanchonete, Ariana viu uma coisa horrorosa. Viu a sociedade atual brindar o seu conformismo com cafezinhos e refrigerantes. Pagou a conta. Pegou o carro e seguiu até a praça Benedito Calixto, onde, ela já sabia, tinha uma loja de tatuagens. Entrou naquele recinto estranho decidida. Paredes todas pretas, com desenhos de caveiras e monstros musculosos. Achou o rock que tocava no som um pouco pesado, mas sentiu-se à vontade. Encomendou que lhe tatuassem nas costas, logo em cima da bunda, fuck off. E o esquisito não foi esta atitude ter sido tomada por uma mulher com mais de 30 anos. Nem aquilo que resolveu escrever em seu corpo. A esquisitice-mor foi ninguém ter percebido. Rodolfo não olha para pedaços de sua esposa enquanto enseja futucadas sobre ela. Daniela mal sabe qual q a cor dos olhos da mãe. E com mais esta resposta sem resposta ao seu protesto, outra vez Ariana rebelou-se toda sem ter público algum para escandalizar."



Fernanda Young.

14/01/2008

O sertão é dentro da gente


Tudo fica mais bonito você estando perto
Você me levou ao delírio por isso eu confesso
Os seus beijos são ardentes
Quando você se aproxima o meu corpo sente
ah ah ah ô ô
ah ah ah ô ô
Vem pra cá deusa do amor

Veja o afro Olodum ao passar na avenida
Todos cantando felizes de bem com a vida
Caminhando lado a lado formamos um belo casal
Somos dois namorados

No swingue dessa banda
Balanço mais forte
Alicerce que tem nesse mundo
O cupido me flechou Au que dor
Foi no afro Olodum que encontrei meu amor

ah ah ah ô ô
Vem pra cá deusa do amor

02/12/2007

Vai passar


"Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está ai, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como "estou contente outra vez". Ou simplesmente "continuo", porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como "sempre" ou "nunca". Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência. Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de "uma ausência". E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços. Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na largatixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça. Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa. Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim: - ... mastiga a ameixa frouxa. Mastiga , mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca ..."



Caio Fernando Abreu (Caio, tou te amando muito, me liga hein)

23/11/2007

Como já dizia Vinícius

É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas para fazer um samba com beleza
É perciso um bocado de tristeza
É perciso um bocado de tristeza
Se não, não se faz um samba não

Se não, é como amar uma mulher só linda, e daí?
Uma mulher tem de ter qualquer coisa além da beleza
Qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De saber mulher feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor e para ser só perdão

Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não

Feito essa gente que anda por aí brincando com a vida
Cuidado companheiro, a vida é para valer
E não se engane não, tem uma só
Tu é mesmo o que é bom
E ninguém me vai dizer que tem de ser provado
Muito bem provado com certidão passada em cartório do céu
E assinado em baixo Deus, e com firma reconhecida
A vida não é de brincadeira amigo
A vida é a arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher a sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Põe um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba

Põe um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
E se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
. . .


Música que tocou ontem no lugar que eu adoro,
na companhia de uma pessoa que eu amo,
sentada na calçada e olhando a lua.

08/11/2007

Carta para alguém bem perto


"Não pode ser. Não posso ser assim. Estar desta forma, existir. Por quê? Será que todo mundo sente isso? Essa esquisitice enquanto respira? Todo mundo pensa enquanto respira? Pensa em cada bocado de oxigênio que entra e que sai, depois, já estragado, já gás carbônico? Eles sentem assim, da maneira que eu sinto? Gostaria de saber se as pessoas ficam pensando sobre o ar ou se apenas o respiram, de forma simples e vital. Queria saber se é mais agradável ser outra pessoa. Se é bom sentir-se em outro. Num corpo mais gordo – será mais macio existir dentro de 90 quilos? O gosto da boca, a sensação de estar vivo, seria diferente? Porque há um sabor de vida dentro da cavidade bucal. Há microorganismos vivos por todos os cantos da gente. Alguém aí sente isso? Como eu sinto, desde menina, cócegas estranhas, que me inquietam e agoniam, por causa desses seres viventes, que têm funções biológicas que nunca entendi. Quantas bactérias carrego comigo? Por que, afinal, essa complexidade toda? Essa chatice indagativa existencial? Por que não sou uma burra? Por que eu não sou uma mesa? Simples como uma mesa. Óbvia como uma mesa. Prática. Aceitável. Necessária".

Fernanda Young.